Cecília Meireles, Desenho

Traça a reta e a curva,
a quebrada e a sinuosa
Tudo é preciso.
De tudo viverás.

Cuida com exatidão da perpendicular
e das paralelas perfeitas.
Com apurado rigor.
Sem esquadro, sem nível, sem fio de prumo,
traçarás perspectivas, projetarás estruturas.
Número, ritmo, distância, dimensão.
Tens os teus olhos, o teu pulso, a tua memória.

Construirás os labirintos impermanentes
que sucessivamente habitarás.

Todos os dias estarás refazendo o teu desenho.
Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida.
E nem para o teu sepulcro terás a medida certa.

Somos sempre um pouco menos do que pensávamos.
Raramente, um pouco mais.

Cecília Meireles

José Régio, Libertação

Menino doido, olhei em volta, e vi-me
Fechado e só na grande sala escura.
(Abrir a porta, além de ser um crime,
Era impossível para a minha altura…)

Como passar o tempo?… E diverti-me
Desta maneira trágica e segura:
Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,
Desfiz trapos, arames, serradura…

Ah, meu menino histérico e precoce!
Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
E tens a inquietação da Descoberta!

O menino, por fim, tombou cansado;
O seu boneco aí jaz esfarelado…
E eu acho, nem sei como, a porta aberta!

Pedro Homem de Mello, O Rapaz da Camisola Verde

É com histórias que se conta a vida
E a minha história é breve de contar.
Mas a palavra bela e proibida
Tem da noite os silêncios e o luar…

Podia eu vir, a meio do caminho,
Juntar-me à Cruz, cantando para erguê-la.
Mas o segredo, amigos, é meu vinho
E minha estrela.

Podia, com os braços, destruir
A trajectória deste coração.
Mas sou de Alcácer Quibir
De El-Rei Dom Sebastião.

E assim, como em manhã de nevoeiro
– Manhã de Outono quando não de Abril –
Aqui vos deixo, oculto mas inteiro,
O meu perfil…

pedro homem de mello
o rapaz da camisola verde (1954)

Jorge de Sena, Tentações do Apocalipse

Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assassina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na torpitude
de existir-se, ao menos possa haver
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)

Jorge de Sena in peregrinatio ad loca infecta 1969

Armindo Mendes de Carvalho, Cantiga do Pobrediabismo de Café

Intelectuais reconhecidos pelo notário
poetas muitos reconhecidos pela família
romancistas traduzidos lá fora cá pra dentro
o dr. bastante burro que faz mal às musas
o escultor que tacteia a senhora escultural
o ensaísta amigo das poetisas lusas
o crítico ficheiral arrumado responsável
irresponsável vespertinamente às quintas-feiras
a viúva abundante devoradora de miúdas
pequenas com muito jeito pró teatro e tudo
mancebos beija aqui beija ali beija acolá e nada
o tatebitatismo do senhor que foi ministro
o fotógrafo de arte que tem dentes postiços
a postiça menina que se atira à dentadura
o profissional contador de anedotas
e a anedota que se conta da esposa
a antiga casta susana entre os velhos
os velhinhos entre a vida e a morte
os artistas suburbanos da amadora
antologistas do verso erótico dos amigos
o declamador nortenho de pronúncia ainda lá
três inventores e meio da filosofia nacional
muitos pintores que chateiam as paredes
muitos senhores que teimam tinta e papel

e se houvesse justiça tinham pena capital

Armindo Mendes de Carvalho in Cantigas de Amor & Maldizer, 1966

Carlos Drummond de Andrade, Deus Triste

Deus é triste.

Domingo descobri que Deus é triste
pela semana afora e além do tempo.

A solidão de Deus é incomparável.
Deus não está diante de Deus.
Está sempre em si mesmo e cobre tudo
tristinfinitamente.

A tristeza de Deus é como Deus: eterna.

Deus criou triste.
Outra fonte não tem a tristeza do homem.

Carlos Drummond de Andrade, in ‘As Impurezas do Branco’

António Gedeão, Calçada de Carriche

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

António Gedeão, in ‘Teatro do Mundo’

Fernando Pessoa, Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou

Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou.

Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.

Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por demais inteligente.

Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) — por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror da e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do auto-domínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associacões, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os pormenores sem importância mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; não são pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não estou inspirado, deliro. Sei pintar mas nunca pintei, sei compor música, mas nunca compus. Estranhas concepções em três artes, belos voos de imaginação acariciam-me o cérebro; mas deixo-os ali dormitar até que morrem, pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter em coisas do mundo externo.

O meu carácter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos. Aflige-me a ideia de se encontrar uma solução para os mais altos, mais nobres, problemas da ciência, da filosofia; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de horror. Que as coisas mais momentosas se concretizem, que um dia os homens venham todos a ser felizes, que se encontre uma solução para os males da sociedade, mesmo na sua concepção — enfurece-me. E, contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma difícil de conceber.

Embora tenha sido leitor voraz e ardente, não me lembro de qualquer livro que haja lido, em tal grau eram as minhas leituras estados do meu próprio espírito, sonhos meus — mais, provocações de sonhos. A minha própria recordação de acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do que incoerente. Estremeço ao pensar quão pouco resta no meu espírito do que foi a minha vida passada. Eu, um homem convicto de que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje.

1910?

Mário de Sá-Carneiro, Sete Canções de Declínio

Fragmento do manuscrito

1.

Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto d’Astro –
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real – livre, sem mastro.
Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada –
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada. . .

2.

Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.

  • Desçamos panos de fundo
    A cada hora vivida.
    Desfiles, danças – embora
    Mal sejam uma ilusão.
  • Cenários de mutação
    Pela minha vida fora!
    Quero ser Eu plenamente:
    Eu, o possesso do Pasmo.
  • Todo o meu entusiasmo,
    Ah! que seja o meu Oriente!
    O grande doido, o varrido,
    O perdulário do Instante –
    O amante sem amante,
    Ora amado ora traído…
    Lançar as barcas ao Mar –
    De névoa, em rumo de incerto…
  • Pra mim o longe é mais perto
    Do que o presente lugar.
    …E as minhas unhas polidas –
    Ideia de olhos pintados. . .
    Meus sentidos maquilados :
    A tintas desconhecidas…
    Mistério duma incerteza
    Que nunca se há-de fixar…
    Sonhador em frente ao mar
    Duma olvidada riqueza…
  • Num programa de teatro
    Suceda-se a minha vida:
    Escada de Giro descida
    Aos pinotes, quatro a quatro!

3.

Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras:
Só as Cores são verdadeiras –
Siga sempre o festival!
Kermesse – eia! – e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
Defronte do carroussel,
Eu, em ternura esquecido…
Fitas de cor, vozearia –
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs – os meus afectos
Com librés de fantasia!
Ser bom… Gostaria tanto
De o ser… Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.

  • Afectos… divagações…
    Amigo dos meus amigos…
    Amizades são castigos,
    Não me embaraço em prisõe
    Fiz deles os meus criados,
    Com muita pena – decerto.
    Mas quero o Salão aberto,
    E os meus braços repousados.

4.

As grandes Horas! – vivê-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime –
Sacrifícios são novelas.
«Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto»…

  • Mas não há maior desgosto
    Nem há maior vilania!
    E quem for Grande não venha .
    Dizer-me que passa fome:
    Nada há que se não dome
    Quando a Estrela for tamanha!
    Nem receios nem temores,
    Mesmo que sofra por nós
    Quem nos faz bem. Esses dós
    Impeçam os inferiores.
    Os Grandes, partam – dominem
    Sua sorte em suas mãos:
  • Toldados, inúteis, vãos,
    Que o seu Destino imaginem!
    Nada nos pode deter;
    O nosso caminho é d’Astro!
    Luto – embora! – o nosso rastro,
    Se pra nós Oiro há-de ser!. . .

5.

Vaga lenda facetada :
A imprevisto e miragens
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada. . .
Um baile russo a mil cores,
Um Domingo de Paris –
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores…
Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram –
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram…
Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda. . .
Saudade que não recorda –
Bola de tennis no ar…
Um leque que se rasgou –
Anel perdido no parque –
Lenço que acenou no embarque
D’Aquela que não voltou…
Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços, à beira-mar,
Em tardes de céu azul…
Viagem circulatória
Num expresso de wagons-leitos –
Balão aceso – defeitos
De instalação provisória. . .
Palace cosmopolita
De rastaquoères e cocottes –
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita…
Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-há –
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole…
Pinturas a «ripolin»,
Anúncios pelos telhados –
O barulho dos teclados
Das Linotyp’ do «Matin»…
Manchette de sensação
Transmitida a todo o mundo –
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revol’ção…
Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo – cheio
De carimbos, lado a lado…
Nobre ponte citadina
De intranquila capital –
A humidade outonal
Duma manhã de neblina…
Uma bebida gelada –
Presentes todos os dias…
Champanhe em taças esguias
Ou água ao sol entornada…
Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios…
Porta falsa de mistérios –
Toda uma estante repleta:
Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida –
Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo…

  • A eterna mágoa dum beijo,
    Essa mesma, ela me expande…

6.

Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida. . .
Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na ideia dum país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem…
Parou ali a barca – e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou… – ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo…
… Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguecida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor de rosa,
As torres de platina e de saudade.
Avenidas de seda deslizando,
Praças d’honra libertas sobre o mar-
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos – carícias de âmbar flutuando…
Os palácios a rendas e escumalha,
De filigrana e cinza as Catedrais –
Sobre a cidade, a luz – esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais…
Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho – solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada…
Exílio branco – a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos – seu brou-u-há…
E na Praça mais larga, em frágil cera,
Eu – a estátua «que nunca tombará»…

7.
Meu alvoroço d’oiro e lua
Tinha por fim que transbordar…

  • Caiu-me a Alma ao meio da rua,
    E não a posso ir apanhar!

Mário de Sá-Carneiro
Paris, Verão de 1915.