Pedro Homem de Mello, O Rapaz da Camisola Verde

É com histórias que se conta a vida
E a minha história é breve de contar.
Mas a palavra bela e proibida
Tem da noite os silêncios e o luar…

Podia eu vir, a meio do caminho,
Juntar-me à Cruz, cantando para erguê-la.
Mas o segredo, amigos, é meu vinho
E minha estrela.

Podia, com os braços, destruir
A trajectória deste coração.
Mas sou de Alcácer Quibir
De El-Rei Dom Sebastião.

E assim, como em manhã de nevoeiro
– Manhã de Outono quando não de Abril –
Aqui vos deixo, oculto mas inteiro,
O meu perfil…

pedro homem de mello
o rapaz da camisola verde (1954)

Jorge de Sena, Tentações do Apocalipse

Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assassina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na torpitude
de existir-se, ao menos possa haver
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)

Jorge de Sena in peregrinatio ad loca infecta 1969

Armindo Mendes de Carvalho, Cantiga do Pobrediabismo de Café

Intelectuais reconhecidos pelo notário
poetas muitos reconhecidos pela família
romancistas traduzidos lá fora cá pra dentro
o dr. bastante burro que faz mal às musas
o escultor que tacteia a senhora escultural
o ensaísta amigo das poetisas lusas
o crítico ficheiral arrumado responsável
irresponsável vespertinamente às quintas-feiras
a viúva abundante devoradora de miúdas
pequenas com muito jeito pró teatro e tudo
mancebos beija aqui beija ali beija acolá e nada
o tatebitatismo do senhor que foi ministro
o fotógrafo de arte que tem dentes postiços
a postiça menina que se atira à dentadura
o profissional contador de anedotas
e a anedota que se conta da esposa
a antiga casta susana entre os velhos
os velhinhos entre a vida e a morte
os artistas suburbanos da amadora
antologistas do verso erótico dos amigos
o declamador nortenho de pronúncia ainda lá
três inventores e meio da filosofia nacional
muitos pintores que chateiam as paredes
muitos senhores que teimam tinta e papel

e se houvesse justiça tinham pena capital

Armindo Mendes de Carvalho in Cantigas de Amor & Maldizer, 1966

Almada Negreiros, Deixemos a Humanidade à Sua Ordem Natural

Não aleijemos a pobre humanidade mais do que ela já está com tantas sacudidelas da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima. Do individualismo para o colectivismo e do colectivismo para o individualismo. Não sejamos tão crianças que queiramos levantar ao ar a esfera pretendendo agarrá-la apenas pelo hemisfério da direita ou apenas pelo da esquerda, ou apenas pelo hemisfério superior, porque a única maneira de agarrá-la bem tão-pouco é pôr-lhe as mãos por baixo, nem ainda abraçando-a com os dois braços e os dedos metidos uns nos outros para não deixar escapar as mãos e com o próprio peito do lado de cá a ajudar também; a única maneira de equilibrar a esfera no ar é deixá-la estar no ar como a pôs Deus Nosso Senhor, ás voltas à roda do sol, como a lua à roda de nós e assegurada contra todos os riscos dos disparates da humanidade.
Não temos mais remédio do que ir aprender tecnicamente como funcionam estas coisas tão naturais!
O Mundo da Natureza é o modelo dos modelos de todas as maquinarias, porque não havemos então de acertar também o mundo social no seu próprio funcionamento como todas as outras máquinas do mundo?