Almada Negreiros, Manifesto Anti-Dantas

+MANIFESTO+
+ANTI-DANTAS+
E
POR EXTENSO
POR
JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS
POETA D’ORPHEU
FUTURISTA
E
TUDO
ESTE
Manifesto não teria sido possível sem Marinetti. Sem o clima de insurreição contra as belas-letras cultivadas pelas academias, naquele ambiente morno em que as imagens sediças têm um viço de esmalte e de pintura à pistola.

Sempre esses cenáculos em que pontificam caducos literatos de graves ademanes senis e de frases brunidas, medidas pelo diapasão dos clássicos que o tempo ressequiu, foram considerados os templos da Literatura e da Arte consagrada e definitiva.

Sempre também os que vieram ao mundo com algo para dizer de novo, reagiram contra esses colégios de eruditos e de artistas aposentados na glória, essa glória capitalizada em duas ou três obras de sofrível sucesso, elevadas pelo panegirico dos confrades do elogio mútuo a sensacionais obras primas de expressão mundial.

Mas escola nenhuma rompera tão desabridamente com as reverências do velho mundo das letras, refugara as glórias da tradição e da vida oficial, como esse Futurismo, que Marinetti projectara no mundo, com o ardor, a combatividade, a diabólica juventude dum libertário.

A Civilização material representada pelo industrialismo, a potência criadora do homem vista através das energias mecânicas, o dinamismo e a vertigem como expressão dum novo estado de alma trouxeram novos ritmos à epopeia através do verbo poético de Whitman, o grande poeta da democracia, e de Verhaeren, o cantor das grandes urbes tentaculares, em que a vida ganha uma expressão colectiva, como até aí só episòdicamente alcançara nos breves momentos das cruzadas ou das expedições militares.

Mas é o Futurismo que proclama a revolta do homem. E porque é muito mais um acto de rebelião e, portanto, um acto impossível de controlar racionalmente, do que um movimento literário ou estético que trás, por adição, ao património literário uma contribuição nova, no seu âmago estuam todas as contradições e germinam os grandes conflitos que pirotècnicamente deflagraram depois sobre o mundo, ensombrando de inquietação a face do nosso tempo.

O futuro militante fascista, ali apregoa o valor purificador e criador da guerra, o desdém da civilização pacífica e de todos os seus acentos femininos e cristãos. É a tuba sonora da vertigem e da luta. A linguagem adquire um valor novo—lançada em combinações extravagantes e brutais, alheias à sintaxe e à lógica do discurso. São balas. São pedras. São gritos. Balas, pedras e gritos que aumentam de rumor na medida em que as letras aumentam de tamanho.

O clima espiritual de Marinetti ninguém o traduziu melhor que Almada-Negreiros. Ele foi o melhor cartaz do modernismo em Portugal.

Sá-Carneiro era um esteta de ritmos prismáticos, em que a luz se decompunha em florescências decadentes e subtis. Era por assim dizer, uma bandeira heráldica, oirescente e escandalosa.

Fernando Pessoa toma para si o papel de mentor intelectual.
Há sempre um sentido oculto nas suas criações literárias.
Sempre lhe preside uma ideia. Sempre procura opor ao que está
uma filosofia, uma mentalidade ou até uma nova humanidade.
Santa Rita figura de precursor, e como tal, é um impulso que se deixa de realizar em si para se realizar nos outros.

Almada é a trombeta do cortejo. Salta à frente, com este estridente manifesto literário, em que o escândalo rebenta por todas as linhas, salta à frente com teatralidade dos seus gestos, dos seus gritos e dos seus atentados ao gosto e aos hábitos do senhor-toda-a-gente, hábitos de trajar, de pensar, de fazer versos, de ser funcionário público e de ter descendência linfática.

Destapa a careca dos burgueses, ri-se da sua literatura sem noviade, sem imaginação, hipócrita e probremente sexual, do seu lirismo requentado, da sua política de labita, do seu jornalismo sem agitação, da sua arte andrajosa e quase-litográfica, da sua moral caricata, amarrada estreitamente ao cadáver dum mundo que se afundava na cova, ruído de reumatismo.

É, em resumo, o gaiato sublime, que puxa a penca ao respeitável conselheirismo nacional e grita à plebe boquiaberta: o Rei vai nu!

Este manifesto, sublinha a revolta dos homens do século XX contra uma formação intelectual que não só não acompanhava as novas gerações nas suas inquietações como pretendia, ainda, continuar de costas para o Futuro, a impor, imperturbàvelmente, a lei seca a um país sequioso de espírito novo.

É, por isso, um documento cujo valor ultrapassa o seu tempo. E pertence, por direito natural, a todas as gerações que vierem para a Vida com a sacrílega e humana ambição de Prometeu.

Petrus

[Nota do Transcritor: Aqui surge uma ilustração.]

Ó Deus! Nunca me faças Sócio da Academia!

António Nobre

+BASTA PUM BASTA+
UMA GERAÇÃO, QUE CONSENTE DEIXAR-SE REPRESENTAR POR UM DANTAS É UMA GERAÇÃO QUE NUNCA O FOI! É UM COIO D’INDIGENTES, D’INDIGNOS E DE CEGOS! É UMA RÊSMA DE CHARLATÃES E DE VENDIDOS, E SÓ PÓDE PARIR ABAIXO DE ZERO!
ABAIXO A GERAÇÃO!
MORRA O DANTAS, MORRA! [Nota do Transcritor: Aqui surge um ícone representando uma mão negra no gesto de apontar] PIM!

UMA GERAÇÃO COM UM DANTAS A CAVALLO É UM BURRO IMPOTENTE!
UMA GERAÇÃO COM UM DANTAS Á PROA É UMA CANÔA EM SECCO!
O DANTAS É UM CIGANO!
O DANTAS É MEIO CIGANO!
O DANTAS SABERÁ GRAMMATICA, SABERÁ SYNTAXE, SABERÁ MEDICINA, SABERÁ FAZER CEIAS P’RA CARDEAES, SABERÁ TUDO MENOS ESCREVER QUE É A ÚNICA COISA QUE ELLE FAZ!
O DANTAS PESCA TANTO DE POESIA QUE ATÉ FAZ SONETOS COM LIGAS DE DUQUEZAS!
O DANTAS É UM HABILIDOSO!
O DANTAS VESTE-SE MAL!
O DANTAS USA CEROULAS DE MALHA!
O DANTAS ESPECÚLA E INÓCULA OS CONCUBINOS!
O DANTAS É DANTAS!
O DANTAS É JÚLIO!
MORRA O DANTAS, MORRA! [Nota do Transcritor: Aqui surge um ícone representando uma mão negra no gesto de apontar] PIM!

O DANTAS FEZ UMA SORÔR MARIANNA QUE TANTO O PODIA SER COMO A SORÔR IGNEZ OU A IGNEZ DE CASTRO, OU A LEONOR TELLES, OU O MESTRE D’AVIZ, OU A DÔNA CONSTANÇA, OU A NAU CATH’RINETA, OU A MARIA RAPAZ!
E O DANTAS TEVE CLÁQUE! E O DANTAS TEVE PALMAS! E O DANTAS AGRADECEU!
O DANTAS É UM CIGANÃO!
NÃO É PRECISO IR P’RO ROCIO PRA SE SER UM PANTOMINEIRO, BASTA SER-SE PANTOMINEIRO!
NÃO É PRECISO DISFARÇAR-SE P’RA SE SER SALTEADOR, BASTA ESCREVER COMO O DANTAS! BASTA NÃO TER ESCRUPULOS NEM MORAES, NEM ARTISTICOS, NEM HUMANOS! BASTA ANDAR CO’AS MODAS, CO’AS POLITICAS E CO’AS OPINIÕES! BASTA USAR O TAL SORRISINHO, BASTA SER MUITO DELICADO, E USAR CÔCO E OLHOS MEIGOS! BASTA SER JUDAS! BASTA SER DANTAS!
MORRA O DANTAS, MORRA! [Nota do Transcritor: Aqui surge um ícone representando uma mão negra no gesto de apontar] PIM!

O DANTAS NASCEU PARA PROVAR QUE NEM TODOS OS QUE ESCREVEM SABEM ESCREVER!
O DANTAS É UM AUTOMATO QUE DEITA P’RA FÓRA O QUE A GENTE JÁ SABE QUE VAE SAHIR… MAS É PRECISO DEITAR DINHEIRO!
O DANTAS É UM SONETO D’ELLE-PROPRIO!
O DANTAS EM GENIO NEM CHEGA A POLVORA SECCA E EM TALENTO É PIM-PAM-PUM!
O DANTAS NÚ É HORROROSO!
O DANTAS CHEIRA MAL DA BOCCA!
MORRA O DANTAS, MORRA! [Nota do Transcritor: Aqui surge um ícone representando uma mão negra no gesto de apontar] PIM!

O DANTAS É O ESCARNEO DA CONSCIENCIA!
SE O DANTAS É PORTUGUEZ EU QUERO SER HESPANHOL!
O DANTAS É A VERGONHA DA INTELLECTUALIDADE PORTUGUEZA! O DANTAS É A META DA DECADENCIA MENTAL!
E AINDA HA QUEM NÃO CÓRE QUANDO DIZ ADMIRAR O DANTAS!
E AINDA HA QUEM LHE ESTENDA A MÃO!
E QUEM LHE LÁVE A ROUPA!
E QUEM TENHA DÓ DO DANTAS!
E AINDA HA QUEM DUVIDE DE QUE O DANTAS NÃO VALE NADA, E QUE NÃO SABE NADA, E QUE NEM É INTELLIGENTE, NEM DECENTE, NEM ZERO!
VOCÊS NÃO SABEM QUEM É A SORÔR MARIANNA DO DANTAS? EU VOU-LHES CONTAR:
A PRINCIPIO, POR CARTAZES, ENTREVISTAS E OUTRAS PREPARAÇÕES COM AS QUAES NADA TEMOS QUE VÊR, PENSEI TRATAR-SE DE SORÔR MARIANNA ALCOFORADO A PSEUDO AUCTORA D’AQUELLAS CARTAS FRANCEZAS QUE DOIS ILLUSTRES SENHORES D’ESTA TERRA NÃO DESCANÇARAM EMQUANTO NÃO ESTRAGARAM P’RA PORTUGUEZ. QUANDO SUBIU O PANNO TAMBEM NÃO FUI CAPAZ DE DISTINGUIR PORQUE ERA NOITE MUITO ESCURA E SÓ DEPOIS DE MEIO ACTO É QUE DESCOBRI QUE ERA DE MADRUGADA PORQUE O BISPO DE BEJA DISSE QUE TINHA ESTADO Á ESPERA DO NASCER DO SOL!
A MARIANNA VEM DESCENDO UMA ESCADA ESTREITISSIMIA MAS NÃO VEM SÓ, TRAZ TAMBEM O CHAMILLY QUE EU NÃO CHEGUEI A VER, OUVINDO APENAS UMA VOZ MUITO CONHECIDA AQUI NA BRAZILEIRA DO CHIADO. POUCO DEPOIS O BISPO DE BEJA É QUE ME DISSE QUE ELLE TRAZIA CALÇÕES VERMELHOS.
A MARIANNA E O CHAMILLY ESTÃO SÓZINHOS EM SCENA, E ÁS ESCURAS, DANDO A ENTENDER PERFEITAMENIE QUE FIZERAM INDECENCIAS NO QUARTO. DEPOIS O CHAMILLY, COMPLETAMENTE SATISFEITO DESPEDE-SE E SALTA P’LA JANELLA COM GRANDE MAGUA DA FREIRA LACRIMOSA. E AINDA HOJE OS TURISTES TEEM OCCASIÃO DE OBSERVAR AS GRADES ARROMBADAS DA JANELA DO QUINTO ANDAR DO COVENTO DA CONCEIÇÃO DE BEJA NA RUA DO TOURO, POR ONDE SE DIZ QUE FUGIU O CELEBRE CAPITÃO DE CAVALLOS EM PARIS E DENTISTA EM LISBOA.
A MARIANNA QUE É HISTERICA COMEÇA DE CHORAR DESATINADAMENTE NOS BRAÇOS DA SUA CONFIDENTE E EXCELLENTE PAU DE CABELLEIRA SORÔR IGNEZ.
… VEEM DESCENDO P’LA DITA ESTREITISSIMA ESCALA (sic),
VARIAS MARIANNAS TODAS EGUAES E DE CANDEIAS ACESAS, MENOS
UMA QUE USA ÓCULOS E BENGALA E AINDA (sic) TODA CURVADA
P’RÁ FRENTE O QUE QUER DIZER QUE É ABBADESSA.
Leia-se no texto escada e anda em lugar de escala e ainda.

E SERIA ATÉ UMA EXCELLENTE PERSONIFICAÇÃO DAS BRUXAS DE GOYA SE QUANDO FALLASSE NÃO TIVESSE AQUELLA VOZ TÃO FRESCA E MAVIOSA DA TIA FELICIDADE DA VIZINHA DO LADO. E REPARANDO NOS DOIS VULTOS INTERROGA ESPAÇADAMENTE COM CADENCIA, AUSTERIDADE E IMMENSA FALTA DE CORDA… QUEM ESTÁ AHI?… E DE CANDEIAS APAGADAS?
—FOI O VENTO, DIZEM AS POBRES INNOCENTES VARADAS DE TERROR… E A ABADESSA QUE SÓ É VELHA NOS ÓCULOS, NA BENGALA E EM ANDAR CURVADA P’RÁ FRENTE MANDA TOCAR A SINETA QUE É UM DÓ D’ALMA O OUVIL-A ASSIM TÃO DEBILITADA. VÃO TODAS P’RÓ CÔRO, MAS EIS QUE, DE REPENTE BATEM NO PORTÃO E SEM SE ANNUNCIAR NEM LIMPAR-SE DA POEIRA, SOBE A ESCADA E ENTRA P’LO SALÃO UM BISPO DE BEJA QUE QUANDO ERA NOVO FEZ BRÉGEIRICES CO’A MENINA DO CHOCOLATE.
AGORA COMPLETAMENTE EMENDADO REVELA Á ABBADESSA QUE SABE POR CARTAS QUE HA HOMENS QUE VÃO ÁS MULHERES DO CONVENTO E QUE AINDA HA POUCO VIRA UM DE CAVALLOS A SALTAR P’LA JANELLA. A ABADESSA DIZ QUE EFFECTIVAMENTE JÁ HA TEMPOS QUE VINHA DANDO P’LA FALTA DE GALLINHAS E TÃO INNOCENTINHA, COITADA, QUE N’AQUELLES OITENTA ANNOS AINDA NÃO TEVE TEMPO P’RA DESCOBRIR A RAZÃO DA HUMANIDADE ESTAR DIVIDIDA EM HOMENS E MULHERES. DEPOIS DE SÉRIOS EMBARAÇOS DO BISPO É QUE ELLA DEU COM O ATREVIMENTO E MANDOU CHAMAR AS DUAS FREIRAS DE HA POUCO CO’AS CANDEIAS APAGADAS. N’ESTA ALTURA ESTA PEÇA POLICIAL TOMA UM PEDAÇO D’INTERESSE PORQUE O BISPO ORA PARECE UM POLICIA DE INVESTIGAÇÃO DISFARÇADO EM BISPO, ORA UM BISPO COM A FALTA DE DELICADEZA DE UM POLICIA D’INVESTIGAÇÃO, E TÃO PERSPICAZ QUE DESCOBRE EM MENOS DE MEIO MINUTO O QUE O PUBLICO JÁ ESTÁ FARTO DE SABER—QUE A MARIANNA DORMIU CO’O NOEL. O PEOR É QUE A MARIANNA FOI À SERRA CO’AS INDISCREÇÕES DO BISPO E DESATA A BERRAR, A BERRAR COMO QUEM SE ESTAVA MARIBANDO P’RA TUDO AQUILLO. ESTEVE MESMO MUITO PERTO DE SE ESTREIAR COM UM PAR DE MURROS NA CORÔA DO BISPO NO QUE (SE) MOSTROU DE UM ATREVIMENTO, DE UMA INSOLENCIA E DE UMA DECISÃO REFILONA QUE EXCEDEU TODAS AS EXPECTATIVAS.
OUVE-SE UMA CORNETA TOCAR UMA MARCHA DE CLARINS E MARIANNA SENTINDO NAS PATAS DOS CAVALLOS TODA A ALMA DO SEU PREFERIDO FOI QUAL PARDALITO ENGAIOLADO A CORRER ATÉ ÁS GRADES DA JANELLA A GRITAR DESALMADAMENTE P’LO SEU NOEL. GRITA, ASSOBIA E REDOPIA E PIA E RASGA-SE E MAGÔA-SE E CAE DE COSTAS COM UM ACCIDENTE, DO QUE, JÁ PRÉVIAMENTE TINHA AVISADO O PUBLICO E O PANNO TAMBEM CAE E O ESPECTADOR TAMBEM CAE DA PACIENCIA ABAIXO E DESATA N’UMA DESTAS PATEADAS TÃO ENORMES E TÃO MONUMENTAES QUE TODOS OS JORNAIS DE LISBOA NO DIA SEGUINTE FORAM UNANIMES N’AQUELLE EXITO TEATRAL DO DANTAS.
A UNICA CONSOLAÇÃO QUE OS ESPECTADORES DECENTES TIVERAM FOI A CERTEZA DE QUE AQUILLO NÃO ERA A SORÔR MARIANNA ALCOFORADO MAS SIM UMA MERDARIANNA—ALDANTASCUFURADO QUE TINHA CHELIQUES E EXAGGEROS SEXUAES.
CONTINUE O SENHOR DANTAS A ESCREVER ASSIM QUE HA-DE GANHAR MUITO CO’O ALCUFURADO E HA-DE VER, QUE AINDA APANHA UMA ESTATUA DE PRATA POR UM OURIVES DO PORTO, E UMA EXPOSIÇÃO DAS MAQUETES PR’Ó SEU MONUMENTO ERECTO POR SUBSCRIÇÃO NACIONAL DO SECULO A FAVOR DOS FERIDOS DA GUERRA, E A PRAÇA DE CAMÕES MUDADA EM PRAÇA DO DR. JULIO DANTAS, E COM FESTAS DA CIDADE P’LOS ANNIVERSARIOS, E SABONETES EM CONTA «JULIO DANTAS» E PASTAS DANTAS P’RÓS DENTES, E GRAXA DANTAS P’RÁS BOTAS, E NIVÉINA DANTAS, E COMPRIMIDOS DANTAS E AUTOCLISMOS DANTAS E DANTAS, DANTAS, DANTAS, DANTAS… E LIMONADAS DANTAS-MAGNESIA.
E FIQUE SABENDO O DANTAS QUE SE UM DIA HOUVER JUSTIÇA EM PORTUGAL TODO O MUNDO SABERÁ QUE O AUTOR DOS LUZIADAS É O DANTAS QUE N’UM RASGO MEMORAVEL DE MODESTIA SÓ CONSENTIU A GLORIA DO SEU PSEUDONIMO CAMÕES.
E FIQUE SABENDO O DANTAS QUE SE TODOS FÔSSEM COMO EU, HAVERIA TAES MUNIÇÕES DE MANGUITOS QUE LEVARIAM DOIS SECULOS A GASTAR.
MAS JULGAES QUE N’ISTO SE RESUME A LITTERATURA PORTUGUEZA? NÃO! MIL VEZES NÃO!
TEMOS, ALÉM D’ISTO O CHIANCA QUE JÁ FEZ RIMAS P’RA ALJUBARROTA QUE DEIXOU DE SER A DERROTA DOS CASTELHANOS P’RA SER A DERROTA DO CHIANCA.
E AS PINOQUICES DE VASCO MENDONÇA ALVES PASSADAS NO TEMPO DA AVÔSINHA! E AS INFELICIDADES DE RAMADA CURTO! E O TALENTO INSOLITO DE URBANO RODRIGUES! E AS GAITADAS DO BRUN! E AS TRADUCÇÕES SÓ P’RA HOMEM (D)O ILLUSTRISSIMO EXCELENTISSIMO SENHOR MELLO BARRETO! E O FREI MATTA NUNES MÔXO! E A IGNEZ SYPHILITICA DO FAUSTINO! E AS IMBECILIDADES DO SOUSA COSTA! E MAIS PEDANTICES DO DANTAS! E ALBERTO SOUSA, O DANTAS DO DESENHO! E OS JORNALISTAS DO SECULO E DA CAPITAL E DO NOTICIAS E DO PAIZ E DO DIA E DA NAÇÃO E DA REPUBLICA E DA LUCTA E DE TODOS, TODOS OS JORNAES! E OS ACTORES DE TODOS OS THEATROS! E TODOS OS PINTORES DAS BELLAS ARTES E TODOS OS ARTISTAS DE PORTUGAL QUE EU NÃO GOSTO. E OS DA AGUIA DO PORTO E OS PALERMAS DE COIMBRA! E A ESTUPIDEZ DO OLDEMIRO CESAR E O DOUTOR JOSÉ DE FIGUEIREDO AMANTE DO MUSEU E AH OH OS SOUSA PINTO HU HI E OS BURROS DE CACILHAS E OS MENÚS DO ALFREDO GUISADO! E (O) RACHITICO ALBINO FORJAZ SAMPAIO, CRITICO DA LUCTA A QUEM O FIALHO COM IMMENSA PIADA INTRUJOU DE QUE TINHA TALENTO! E TODOS OS QUE SÃO POLITICOS E ARTISTAS! E AS EXPOSIÇÕES ANNUAES DAS BELLAS ARTE(S)! E TODAS AS MAQUETES DO MARQUEZ DE POMBAL! E AS DE CAMÕES EM PARIS; E OS VAZ, OS ESTRELLA, OS LACERDA, OS LUCENA, OS ROSA, OS COSTA, OS ALMEIDA, OS CAMACHO, OS CUNHA, OS CARNEIRO, OS BARROS, OS SILVA, OS GOMES, OS VELHOS, OS IDIOTAS, OS ARRANJISTAS, OS IMPOTENTES, OS SCELERADOS, OS VENDIDOS, OS IMBECIS, OS PÁRIAS, OS ASCETAS, OS LOPES, OS PEIXOTOS, OS MOTTA, OS GODINHO, OS TEIXEIRA, OS DIABO QUE OS LEVE, OS CONSTANTINO, OS TERTULIANO, OS GRAVE, OS MANTUA, OS BAHIA, OS MENDONÇA, OS BRAZÃO, OS MATTOS, OS ALVES, OS ALBUQUERQUES, OS SOUSAS E TODOS OS DANTAS QUE HOUVER POR AHI!!!!!!!!!
E AS CONVICÇÕES URGENTES DO HOMEM CHRISTO PAE E AS CONVICÇÕES CATITAS DO HOMEM CHRISTO FILHO!…
E OS CONCERTOS DO BLANCH! E AS ESTATUAS AO LEME, AO EÇA E AO DESPERTAR E A TUDO! E TUDO O QUE SEJA ARTE EM PORTUGAL! E TUDO! TUDO POR CAUSA DO DANTAS!
MORRA O DANTAS, MORRA! [Nota do Transcritor: Aqui surge um ícone representando uma mão negra no gesto de apontar] PIM!

PORTUGAL QUE COM TODOS ESTES SENHORES, CONSEGUIU A CLASSIFICAÇÃO DO PAIZ MAIS ATRAZADO DA EUROPA E DE TODO O MUNDO! O PAIZ MAIS SELVAGEM DE TODAS AS AFRICAS! O EXILIO DOS DEGREDADOS E DOS INDIFFERENTES! A AFRICA RECLUSA DOS EUROPEUS! O ENTULHO DAS DESVANTAGENS E DOS SOBEJOS! PORTUGAL INTEIRO HA-DE ABRIR OS OLHOS UM DIA—SE É QUE A SUA CEGUEIRA NÃO É INCURAVEL E ENTÃO GRITARÁ COMMIGO, A MEU LADO, A NECESSIDADE QUE PORTUGAL TEM DE SER QUALQUER COISA DE ASSEIADO!
MORRA O DANTAS! MORRA! [Nota do Transcritor: Aqui surge um ícone representando uma mão negra no gesto de apontar] PIM!

+JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS+
POETA D’ORPHEU
FUTURISTA
E
+TUDO+
História Muda

[Nota do Transcritor: Aqui surge uma ilustração.]

E assim se alcança a glória…

Presença

António Gedeão, Poema da Terra Adubada

Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.
Por detrás das árvores escondem-se os soldados
com granadas de mão.

As árvores são belas com os troncos dourados.
São boas e largas para esconder soldados.

Não é o vento que rumoreja nas folhas,
não é o vento, não.
São os corpos dos soldados rastejando no chão.

O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes.
É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.
É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.
São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

Depois os lavradores
rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,
e a terra dará vinho e pão e flores
adubada com os corpos dos soldados.

Almeida Garrett, Não te Amo

Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.
E eu n’alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror…
Mas amar!… não te amo, não.

Almeida Garrett, in ‘Folhas Caídas’

António Gedeão, Poema da morte na estrada

Na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
estão quinhentos mortos com os olhos abertos.

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo para fechar os olhos.

Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só momento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.

Mário de Sá-Carneiro, Sete Canções de Declínio

Fragmento do manuscrito

1.

Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto d’Astro –
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real – livre, sem mastro.
Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada –
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada. . .

2.

Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.

  • Desçamos panos de fundo
    A cada hora vivida.
    Desfiles, danças – embora
    Mal sejam uma ilusão.
  • Cenários de mutação
    Pela minha vida fora!
    Quero ser Eu plenamente:
    Eu, o possesso do Pasmo.
  • Todo o meu entusiasmo,
    Ah! que seja o meu Oriente!
    O grande doido, o varrido,
    O perdulário do Instante –
    O amante sem amante,
    Ora amado ora traído…
    Lançar as barcas ao Mar –
    De névoa, em rumo de incerto…
  • Pra mim o longe é mais perto
    Do que o presente lugar.
    …E as minhas unhas polidas –
    Ideia de olhos pintados. . .
    Meus sentidos maquilados :
    A tintas desconhecidas…
    Mistério duma incerteza
    Que nunca se há-de fixar…
    Sonhador em frente ao mar
    Duma olvidada riqueza…
  • Num programa de teatro
    Suceda-se a minha vida:
    Escada de Giro descida
    Aos pinotes, quatro a quatro!

3.

Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras:
Só as Cores são verdadeiras –
Siga sempre o festival!
Kermesse – eia! – e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
Defronte do carroussel,
Eu, em ternura esquecido…
Fitas de cor, vozearia –
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs – os meus afectos
Com librés de fantasia!
Ser bom… Gostaria tanto
De o ser… Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.

  • Afectos… divagações…
    Amigo dos meus amigos…
    Amizades são castigos,
    Não me embaraço em prisõe
    Fiz deles os meus criados,
    Com muita pena – decerto.
    Mas quero o Salão aberto,
    E os meus braços repousados.

4.

As grandes Horas! – vivê-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime –
Sacrifícios são novelas.
«Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto»…

  • Mas não há maior desgosto
    Nem há maior vilania!
    E quem for Grande não venha .
    Dizer-me que passa fome:
    Nada há que se não dome
    Quando a Estrela for tamanha!
    Nem receios nem temores,
    Mesmo que sofra por nós
    Quem nos faz bem. Esses dós
    Impeçam os inferiores.
    Os Grandes, partam – dominem
    Sua sorte em suas mãos:
  • Toldados, inúteis, vãos,
    Que o seu Destino imaginem!
    Nada nos pode deter;
    O nosso caminho é d’Astro!
    Luto – embora! – o nosso rastro,
    Se pra nós Oiro há-de ser!. . .

5.

Vaga lenda facetada :
A imprevisto e miragens
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada. . .
Um baile russo a mil cores,
Um Domingo de Paris –
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores…
Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram –
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram…
Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda. . .
Saudade que não recorda –
Bola de tennis no ar…
Um leque que se rasgou –
Anel perdido no parque –
Lenço que acenou no embarque
D’Aquela que não voltou…
Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços, à beira-mar,
Em tardes de céu azul…
Viagem circulatória
Num expresso de wagons-leitos –
Balão aceso – defeitos
De instalação provisória. . .
Palace cosmopolita
De rastaquoères e cocottes –
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita…
Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-há –
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole…
Pinturas a «ripolin»,
Anúncios pelos telhados –
O barulho dos teclados
Das Linotyp’ do «Matin»…
Manchette de sensação
Transmitida a todo o mundo –
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revol’ção…
Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo – cheio
De carimbos, lado a lado…
Nobre ponte citadina
De intranquila capital –
A humidade outonal
Duma manhã de neblina…
Uma bebida gelada –
Presentes todos os dias…
Champanhe em taças esguias
Ou água ao sol entornada…
Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios…
Porta falsa de mistérios –
Toda uma estante repleta:
Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida –
Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo…

  • A eterna mágoa dum beijo,
    Essa mesma, ela me expande…

6.

Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida. . .
Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na ideia dum país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem…
Parou ali a barca – e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou… – ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo…
… Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguecida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor de rosa,
As torres de platina e de saudade.
Avenidas de seda deslizando,
Praças d’honra libertas sobre o mar-
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos – carícias de âmbar flutuando…
Os palácios a rendas e escumalha,
De filigrana e cinza as Catedrais –
Sobre a cidade, a luz – esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais…
Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho – solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada…
Exílio branco – a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos – seu brou-u-há…
E na Praça mais larga, em frágil cera,
Eu – a estátua «que nunca tombará»…

7.
Meu alvoroço d’oiro e lua
Tinha por fim que transbordar…

  • Caiu-me a Alma ao meio da rua,
    E não a posso ir apanhar!

Mário de Sá-Carneiro
Paris, Verão de 1915.

Um Jantar Ritual Castrejo em Durrães

Depois de séculos de silêncio, celebrou-se novamente Nábia nas margens do rio a que dá nome. Um evento único onde a Serpente esteve presente como testemunha.

A nova tecnologia levou-nos sem dificuldades a uma bonita vila do Minho. E se a beleza da terra se expõe sem pedir licença há ainda mais para descobrir do seu passado.

A tarde começou com uma visita guiada ao Castro dos Castelos, um dos muitos da região que alberga vida humana antes do tempo de Cristo. Na chegada ao Castro, um casal do “tempo castrejo” aguardava pelos curiosos visitantes para oferecer bebida da época.

A explicação esclareceu curiosos e especialistas da mesma forma. E apesar de ainda haver muita terra para escavar até que todo o Castro veja a luz do dia, muito aqui foi feito para que o passado pré-Romano português seja preservado e estudado. Muito pela própria mão e pela vontade das gentes de Durrães.

Houve ainda tempo para mais uma curiosidade histórica apenas a alguns metros do Castro. A Ponte Seca onde Reis paravam carruagens para um jantar seguro e de vista requintada.

E por falar em jantar, este era também uma das propostas do evento que continuava, em crescendo, a superar expectativas.

Num espaço que não poderia ser melhor escolhido, repleto de camadas e camadas de História, a Levada das Pesqueiras estava pronta para receber os muitos visitantes que confirmaram, sem grandes margens para dúvida, existir um forte interesse no passado que a todos nós pertence.

Depois de viajar por todo o país é difícil encontrar gente como se encontra na região de Durrães.

Há orgulho em bem-receber, em abrir braços para todos os géneros, crenças e feitios. Há vontade de nos fazer sentir em casa, de mostrar que este belo e único lugar tem tanto para oferecer.

Foi, afinal, uma colaboração entre dezenas de pessoas da terra (e não só!) que permitiu tão bem-executado detalhe. Uma fogueira ardia já no centro da estrutura principal, rodeada pelas margens do Neiva e com muito para fazer para pequenos e graúdos. Mais do que vitrines de museu, aqui meteram-se mãos à obra.

Muito para lá das cada vez menos interessantes feiras medievais, o que aqui estava servia para instruir, religar-nos à terra que pisamos. Velhos e novos aprenderam da melhor forma. Mas esta inovadora lição não se ficaria por aqui.

Da magnífica ponte que nos permitia atravessar para moinhos que susteram a vida na região há dezenas de anos, velas acendiam-se com o cair da luz.

Com as palavras certas, uma voz narrou Nábia e a sua história enquanto vultos surgiam na nossa direção. Estávamos ali, afinal de contas, para uma oferenda à Deusa. E assim aconteceu.

Era agora altura de celebrar! Tomados os lugares foi oferecido aos visitantes um manjar digno, quer na qualidade quer na precisão histórica. Não revelaremos aqui a ementa por respeito a quem a preparou com tal detalhe.

3 pratos e a imersão deste evento estava estampada no rosto dos presentes. De jovens a adultos, fez-se mais do que aprender o passado: reviveu-se.

Fica a esperança que se repita e que inspire outros lugares, outras terras a fazer o mesmo. Por agora, Durrães prestou a digna homenagem a deuses de outros tempos que, estamos em crer, não poderiam ter ficado mais satisfeitos.

Aires Ferreira