António Gedeão, Calçada de Carriche

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

António Gedeão, in ‘Teatro do Mundo’

Fernando Pessoa, Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou

Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou.

Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.

Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por demais inteligente.

Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) — por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror da e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do auto-domínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associacões, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os pormenores sem importância mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; não são pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não estou inspirado, deliro. Sei pintar mas nunca pintei, sei compor música, mas nunca compus. Estranhas concepções em três artes, belos voos de imaginação acariciam-me o cérebro; mas deixo-os ali dormitar até que morrem, pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter em coisas do mundo externo.

O meu carácter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos. Aflige-me a ideia de se encontrar uma solução para os mais altos, mais nobres, problemas da ciência, da filosofia; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de horror. Que as coisas mais momentosas se concretizem, que um dia os homens venham todos a ser felizes, que se encontre uma solução para os males da sociedade, mesmo na sua concepção — enfurece-me. E, contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma difícil de conceber.

Embora tenha sido leitor voraz e ardente, não me lembro de qualquer livro que haja lido, em tal grau eram as minhas leituras estados do meu próprio espírito, sonhos meus — mais, provocações de sonhos. A minha própria recordação de acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do que incoerente. Estremeço ao pensar quão pouco resta no meu espírito do que foi a minha vida passada. Eu, um homem convicto de que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje.

1910?

Mário de Sá-Carneiro, Sete Canções de Declínio

Fragmento do manuscrito

1.

Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto d’Astro –
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real – livre, sem mastro.
Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada –
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada. . .

2.

Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.

  • Desçamos panos de fundo
    A cada hora vivida.
    Desfiles, danças – embora
    Mal sejam uma ilusão.
  • Cenários de mutação
    Pela minha vida fora!
    Quero ser Eu plenamente:
    Eu, o possesso do Pasmo.
  • Todo o meu entusiasmo,
    Ah! que seja o meu Oriente!
    O grande doido, o varrido,
    O perdulário do Instante –
    O amante sem amante,
    Ora amado ora traído…
    Lançar as barcas ao Mar –
    De névoa, em rumo de incerto…
  • Pra mim o longe é mais perto
    Do que o presente lugar.
    …E as minhas unhas polidas –
    Ideia de olhos pintados. . .
    Meus sentidos maquilados :
    A tintas desconhecidas…
    Mistério duma incerteza
    Que nunca se há-de fixar…
    Sonhador em frente ao mar
    Duma olvidada riqueza…
  • Num programa de teatro
    Suceda-se a minha vida:
    Escada de Giro descida
    Aos pinotes, quatro a quatro!

3.

Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras:
Só as Cores são verdadeiras –
Siga sempre o festival!
Kermesse – eia! – e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
Defronte do carroussel,
Eu, em ternura esquecido…
Fitas de cor, vozearia –
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs – os meus afectos
Com librés de fantasia!
Ser bom… Gostaria tanto
De o ser… Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.

  • Afectos… divagações…
    Amigo dos meus amigos…
    Amizades são castigos,
    Não me embaraço em prisõe
    Fiz deles os meus criados,
    Com muita pena – decerto.
    Mas quero o Salão aberto,
    E os meus braços repousados.

4.

As grandes Horas! – vivê-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime –
Sacrifícios são novelas.
«Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto»…

  • Mas não há maior desgosto
    Nem há maior vilania!
    E quem for Grande não venha .
    Dizer-me que passa fome:
    Nada há que se não dome
    Quando a Estrela for tamanha!
    Nem receios nem temores,
    Mesmo que sofra por nós
    Quem nos faz bem. Esses dós
    Impeçam os inferiores.
    Os Grandes, partam – dominem
    Sua sorte em suas mãos:
  • Toldados, inúteis, vãos,
    Que o seu Destino imaginem!
    Nada nos pode deter;
    O nosso caminho é d’Astro!
    Luto – embora! – o nosso rastro,
    Se pra nós Oiro há-de ser!. . .

5.

Vaga lenda facetada :
A imprevisto e miragens
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada. . .
Um baile russo a mil cores,
Um Domingo de Paris –
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores…
Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram –
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram…
Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda. . .
Saudade que não recorda –
Bola de tennis no ar…
Um leque que se rasgou –
Anel perdido no parque –
Lenço que acenou no embarque
D’Aquela que não voltou…
Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços, à beira-mar,
Em tardes de céu azul…
Viagem circulatória
Num expresso de wagons-leitos –
Balão aceso – defeitos
De instalação provisória. . .
Palace cosmopolita
De rastaquoères e cocottes –
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita…
Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-há –
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole…
Pinturas a «ripolin»,
Anúncios pelos telhados –
O barulho dos teclados
Das Linotyp’ do «Matin»…
Manchette de sensação
Transmitida a todo o mundo –
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revol’ção…
Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo – cheio
De carimbos, lado a lado…
Nobre ponte citadina
De intranquila capital –
A humidade outonal
Duma manhã de neblina…
Uma bebida gelada –
Presentes todos os dias…
Champanhe em taças esguias
Ou água ao sol entornada…
Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios…
Porta falsa de mistérios –
Toda uma estante repleta:
Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida –
Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo…

  • A eterna mágoa dum beijo,
    Essa mesma, ela me expande…

6.

Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida. . .
Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na ideia dum país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem…
Parou ali a barca – e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou… – ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo…
… Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguecida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor de rosa,
As torres de platina e de saudade.
Avenidas de seda deslizando,
Praças d’honra libertas sobre o mar-
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos – carícias de âmbar flutuando…
Os palácios a rendas e escumalha,
De filigrana e cinza as Catedrais –
Sobre a cidade, a luz – esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais…
Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho – solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada…
Exílio branco – a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos – seu brou-u-há…
E na Praça mais larga, em frágil cera,
Eu – a estátua «que nunca tombará»…

7.
Meu alvoroço d’oiro e lua
Tinha por fim que transbordar…

  • Caiu-me a Alma ao meio da rua,
    E não a posso ir apanhar!

Mário de Sá-Carneiro
Paris, Verão de 1915.

Almada Negreiros, Deixemos a Humanidade à Sua Ordem Natural

Não aleijemos a pobre humanidade mais do que ela já está com tantas sacudidelas da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima. Do individualismo para o colectivismo e do colectivismo para o individualismo. Não sejamos tão crianças que queiramos levantar ao ar a esfera pretendendo agarrá-la apenas pelo hemisfério da direita ou apenas pelo da esquerda, ou apenas pelo hemisfério superior, porque a única maneira de agarrá-la bem tão-pouco é pôr-lhe as mãos por baixo, nem ainda abraçando-a com os dois braços e os dedos metidos uns nos outros para não deixar escapar as mãos e com o próprio peito do lado de cá a ajudar também; a única maneira de equilibrar a esfera no ar é deixá-la estar no ar como a pôs Deus Nosso Senhor, ás voltas à roda do sol, como a lua à roda de nós e assegurada contra todos os riscos dos disparates da humanidade.
Não temos mais remédio do que ir aprender tecnicamente como funcionam estas coisas tão naturais!
O Mundo da Natureza é o modelo dos modelos de todas as maquinarias, porque não havemos então de acertar também o mundo social no seu próprio funcionamento como todas as outras máquinas do mundo?